"O homem-mulher" é o mais recente livro do escritor carioca Sérgio Sant'Anna e reúne dezenove contos. O autor é reconhecidamente um dos maiores ficcionistas brasileiros. Sua primeira obra publicada o livro de contos "O sobrevivente", no ano de 1969. Desde então venceu, com muita justiça, diversos prêmios literários: Jabuti, Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Clarice Lispector, da Fundação Biblioteca Nacional.
Sérgio Sant'Anna é carioca. Nasceu no Rio de Janeiro em 1941.
É o segundo livro que leio dele. Há mais ou menos quinze anos eu havia lido com certo prazer o romance "Um crime delicado" (lançado em 1997). Os contos de Sérgio Sant'Anna, porém, são um caso à parte e a minha vontade é de entrar no site da Amazon e encomendar todas os seus livros em estoque com a máxima urgência.
Controlo minha compulsão consumista para deixar registradas minhas primeiras impressões sobre o que estou lendo.
O livro tem 183 páginas e é uma publicação da Companhia das Letras.
O conto que abre o livro é o que lhe dá o título: O homem-mulher. Em cinco páginas, Sérgio Sant'Anna conta a aventura sexual de Adamastor Magalhães, que preferia ser chamado de Fred Wilson e que se vestia de Claire (personagem da peça "As criadas", de Jean Genet) num certo dia de carnaval. Ele então se encontra com uma menina chamada Dalva, os dois cheiram lança-perfume e vão transar no cemitério. A descrição fria de sexo explícito sem absolutamente nenhum erotismo atordoa e quase leva o leitor a nocaute. Há um evidente diálogo com a obra mencionada de Genet e que mereceria um desenvolvimento mais alentado que não cabe nesta simples resenha. O desfecho do conto é perfeito para o fim a que o contista se propôs.
Saio desse primeiro conto acreditando que vem mais do mesmo. O nome do conto é Lencinhos, o que sugere mais um lenço encharcado de éter. No entanto, em comum com o primeiro conto, somente o nome antiquado do personagem principal - Teóphilo ou, simplesmente, Téo. A narrativa é em primeira pessoa. Téo é um cinquentão aposentado. Formou-se em Direito mas não seguiu nenhuma carreira jurídica consagrada - Magistratura, Ministério Público ou Advocacia. Contentou-se em ser funcionário público da Justiça do Trabalho (como eu fui por um ano e um mês, quando tinha 25 anos). Casou-se, teve uma filha, divorciou-se e agora é um velho solitário caminhando pelo largo do Machado, indo a pé do consultório da dra. Lisete, sua dentista, até seu apartamento na rua Senador Vergueiro. Com a boca anestesiada, ouve uma voz feminina, muito suave, que sussurra às suas costas: "Não quer ver uns lencinhos, senhor?". Essa é Manoela, mulher de João, que irá mudar sua vida. Em 36 páginas, transcorre uma narrativa comovente que em tudo contrasta com o conto de abertura, em especial pela magistral e delicada exploração de temática erótica.
O terceiro conto é Um retrato. Da mesma forma que em Lencinhos, Sérgio Sant'Anna fala aqui também da solidão. Não, porém, a conjugal, mas a filial. É um conto sobre a orfandade do homem adulto, sobre a perda do pai e sobre a presença da mãe (que morreu quando ele ainda tinha cinco anos) no imaginário dos dois - pai e filho.
A Madona, quarto conto do livro, tem apenas duas páginas. O enredo é de uma falsa simplicidade: o membro de uma quadrilha de quadros reflete sobre a inutilidade do roubo de algumas telas conhecidas de Edward Munch - "O Grito" e "A Madona" (ilustração ao lado). Sendo as telas tão famosas, nenhum colecionador poderá exibir para terceiros as obras. Assim, terá que escondê-las para sempre e usufruir delas em segredo. É o que faz o ladrão frustrado que, diante desses dois quadros, se pergunta se suportaria, sem se destruir, a dor de conviver interminavelmente com o quadro "O Grito" se não tivesse também roubado "A Madona".
Guilherme Purvin
(Texto publicado originalmente em 7 de novembro de 2015)